sábado, 18 de maio de 2024

Fabrice Luchini e a “merda de celular”


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A edição de 8 de maio do C dans l’air, programa diário de debate entre especialistas sobre assuntos do momento exibido pelo canal estatal francês France 5, foi dedicada à morte do escritor e apresentador Bernard Pivot, muito adorado na França por comandar programas de literatura e concursos de ditado, os quais despertaram em muitos o gosto pelos livros e pelo idioma. Não somente pelo palavrão (tão adorado pelos brasileiros!), mas também pelo conteúdo crítico da submissão das sociedades ocidentais aos smartphones, decidi separar e traduzir o trecho em que o ator francês Fabrice Luchini deplora que a sociabilidade tem sido minada pelo vício nas telas; que ele mesmo se considera “viciado” e encara o teatro como uma forma de escape e resistência; e que, viajando um pouco na maionese geopolítica, a despeito de todos os conflitos globais, “essa merda chamada (telefone) celular” pode destruir o próprio Ocidente.

Não costumo publicar palavrões na página, e mesmo quando eles aparecem, adoto termos mais eufêmicos nas traduções. Porém, a expressão foi tão extrema que vai muito além da crítica que eu mesmo também faço aqui dessa nova ordem informativa, tanto de minha lavra quanto de textos copiados, no mais das vezes, sem autorização. O subtítulo da edição era “Mas quem ainda lê?”, e se refere ao fato de Pivot ter sido no passado um vulgarizador da leitura e da literatura, enquanto hoje o volume e a qualidade dos leitores parecem estar em queda – fato que justamente não é unânime entre os convidados. Eu mesmo traduzi, mas não legendei o vídeo (disponível no fim da página) nem ofereci uma transcrição do original francês, não procurei ser literal em alguns pontos e pus algumas observações entre colchetes.

Também já vou fazer aqui as notas explicativas, ao invés de as deixar pro fim do texto. O livro que Luchini menciona, de autoria de Gérald Bronner, se chama Apocalypse cognitive: La face obscure de notre cerveau (Apocalipse cognitivo: A face obscura de nosso cérebro), e há inclusive uma conferência virtual disponível ao público, em que brasileiras o discutem. Sobre o poema de Charles Baudelaire, trata-se do soneto “À une passante” (A uma passante), publicado em seu livro Les fleurs du mal (As flores do mal), de 1857, muito criticado e perseguido pelas autoridades em seu tempo. Há pelo menos duas boas traduções em português disponíveis, só você procurar no Google.

Aproveite o conteúdo e a reflexão sobre ele, e torça comigo pra que o doidão ator Fabrice volte pra Atibaia, Jundiaí ou Bragança Paulista e fique cuidando de uma das três filiais da concessionária Chevrolet da família, rs:



Caroline Roux: Tive a oportunidade, Fabrice Luchini, de ver os livros com os quais você trabalha. São livros completamente usados, avariados, anotados, há uma relação física com o objeto do livro no modo como você se apropriava deles.

Fabrice Luchini: Duas coisinhas rápidas: a primeira é que há um livro extraordinário de Bronner a se ler, que mostra a tragédia que está invadindo os adultos, bem como os adolescentes e as crianças. Quer dizer... há um poema de Baudelaire, não tenho tempo de o ler inteiro, mas quando ele diz: La rue assourdissante autour de moi hurlait [tradução minha: “A rua ensurdecedora berrava a meu redor”], ele conta que vê uma mulher maravilhosa, “alta, magra, de luto fechado” etc. E é exatamente essa cena de Baudelaire vendo essa mulher, essa pedestre sublime, isso não é mais possível. Porque a alienação em que estamos todos – no cair da noite estou no teatro pra escapar de meu vício, porque sou viciado... Então, atualmente estou atuando num filme, mas a verdade é que passo horas monstruosas na frente da tela. Então o teatro...

Caroline Roux: Me deixe entender bem o que você está dizendo, Fabrice Luchini: seu vício em telas?

Fabrice Luchini: Ele é real, não tenho vontade de julgar as outras pessoas! Fico aterrado ao ver o isolamento no TGV [trem-bala], mas eu mesmo agora estou viciado em tudo isso, e escapo por meio da prática teatral. [Victor] Hugo me salvou completamente este ano, é extraordinário servir à prosa de Hugo e ter 500 pessoas [assistindo]. O que eu queria dizer é que quando você lê Bronner... leiam Bronner, ele explica que o psiquismo dos seres humanos vai se reduzir ao “curti, não curti, curti, não curti”. Todas as nuances da realidade, todas as imensas cores da variedade da vida, todo o gênio oferecido pelos grandes escritores são aniquilados em reações simplistas de “curti, não curti”. Então, há uma civilização que está... o verdadeiro drama é obviamente a guerra na Ucrânia, é obviamente a China, é obviamente o drama em Israel, é por isso. Mas o drama é que o Ocidente vai perecer, porque vai ser reduzido à dependência dessa merda chamada [telefone] celular. Não estamos nos dando conta que não podemos mais nos apaixonar olhando um rosto de mulher, não estamos nos dando conta da vida em que vamos parar. E é por isso que o teatro é uma maravilha, é um lugar de resistência.


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Bonner na condição de sexagenário


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A edição do Jornal Nacional de 13 de maio de 2024 foi mais uma das ultimamente apresentadas por William Bonner direto do Rio Grande do Sul, devido às tragédias provocadas pelas fortes chuvas e consequentes inundações em todo o estado desde o início de maio. Pode parecer inumano trazer um meme a partir de cenário tão desolador, mas ficou muito engraçado quando ele pronunciou a seguinte frase na abertura da edição, a partir de Porto Alegre, comentando a mudança de roupa repentina desde a escalada da abertura do jornal:

“E antes que você estranhe a diferença de vestimenta entre a abertura do Jornal Nacional e este momento, eu tenho que dizer que a temperatura caiu muito nos minutos que separaram um momento do outro. Eu estou respeitando o frio e a minha condição de sexagenário.

Como Bonner sempre teve uma compostura bem rígida e cuidou muito da linguagem, esse erudito “sexagenário” também lhe pareceu bem característico, embora dissonante do fundo com prédios em ruínas, rs. Claro que como “meme” falado por uma personalidade famosa, ainda mais com fama de galã no passado, o “minha condição de sexagenário” pode ter usos variados. Aproveite a versão integral do trecho e a última frase publicada à parte:





terça-feira, 14 de maio de 2024

Raízes do lema Mulher, Vida, Liberdade


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Há alguns dias, achei por acaso esta resenha escrita em 2023 pelo italiano Gianni Sartori ao livro de uma acadêmica irano-francesa sobre a revolta das mulheres curdas contra a opressão étnica dos Estados nacionais, especialmente Turquia, Síria e Irã. Quando da publicação do texto, o movimento iraniano de revolta eclodido logo após a morte da jovem curda Jîna Emînî (em persa, Mahsā Amini), que tinha vindo do interior a Teerã, onde foi presa e acossada pela chamada “polícia dos costumes”, completava seis meses e parecia refluir.

Nesse contexto, os dois autores relembram que o lema que rodou o mundo como símbolo dos protestos, “Zan, Zendegi, Āzādi” (em persa, “Mulher, Vida, Liberdade”), na verdade se originou muitas décadas antes, no Curdistão e na língua local: “Jin, Jiyan, Azadî” (o jota se pronuncia como em português). Há dialetos do curdo que usam o alfabeto latino, e outros que usam uma adaptação da escrita árabe; a diferença do i sem circunflexo é que ele é mais curto e fechado do que o i com circunflexo. As formas jiyan e jîyan (com circunflexo) são igualmente corretas.

Eu mesmo traduzi o texto do italiano, mas há também outros artigos em inglês escritos após a morte de Emînî/Amini que traçam a “genealogia” curda, feminista e de esquerda do lema “Mulher, Vida, Liberdade” (o jin curdo é um parente distante do elemento “gin-” de origem grega, que aparece, por exemplo, em “ginecologia” e “misoginia”!). Por exemplo, o de Meghan Bodette (aqui na tradução em português), o de Somayeh Rostampour, a própria autora do livro resenhado (traduzido do persa), e curiosamente a professora Florencia Guarche, já em 2015, tinha defendido um TCC na Unipampa sobre o “Jin, Jiyan, Azadî” e depois fez o mestrado e continua seu doutorado sobre as revolucionárias curdas. Boa leitura!



Algumas considerações sobre a genealogia de “Mulher, Vida, Liberdade”. Uma “fórmula mágica” já empregada por Abdullah Öcalan (fundador do PKK em 1978) ainda em 2006. O lema “Jin, Jiyan, Azadî” não é um artigo de burguês radical-chic: é uma mensagem revolucionária bradada pelas combatentes curdas e escrita sobre as paredes das prisões.

Pretender, com as modestas forças à disposição e a falta de títulos acadêmicos adequados, resenhar, comentar, divulgar (e fatalmente reassumir) o que podemos definir como uma “investigação”, feita pela militante curda Somayeh Rostampour [Jin, Jiyan, Azadi (Woman, Life, Freedom): The Genealogy of a Slogan], sobre as origens e o significado do lema “Jin, Jiyan, Azadî” (“Mulher, Vida, Liberdade”) não pode ser, ao menos de minha parte, senão um exagero.

Por outro lado, os “especialistas de plantão” parecem no mais das vezes concentrados ou em instrumentalizá-lo ou, talvez pior, em utilizá-lo sem critério ou conhecimento adequado. Veja o caso de certa parlamentar europeia italiana ou de corporações paraestatais em todo caso respeitáveis, mas que dificilmente podem ser identificadas com os decênios de luta pela libertação do povo curdo.

É quase uma falta de respeito pelas que o idealizaram, representaram e, diria, quase encarnaram: as mulheres curdas que combatem a opressão patriarcal, estatal e capitalista em todas as suas incontáveis formas.

Vou, portanto, demonstrar aqui.

O movimento de revolta feminista (não parece exagero defini-lo como pré-insurrecional) que, por mais de seis meses, tem incendiado o Rojhilat e o Irã inteiro (e que no momento parece ter entrado numa fase de refluxo) tem uma data exata de início: 16 de setembro de 2022. Naquela data foi assassinada pela polícia moral da República Islâmica Jîna (registrada como Mahsā, porque o nome curdo tinha sido proibido) Amini.

Uma rebelião não somente contra o uso obrigatório do hijab, mas também contra o que Somayeh Rostampour qualifica como “44 anos de apartheid sexual, patriarcado, ditatura militar, neoliberalismo, nacionalismo e teocracia islamista”. E me desculpem se isso é pouco.

Um movimento preparatório para a queda do regime e uma mudança radical das relações sociais.

Apesar de tudo, como é o caso de todo movimento revolucionário, não faltam riscos concretos de instrumentalização (seja da parte de Estados como Israel e os EUA, seja da parte, por exemplo, dos monarquistas nostálgicos).

Atendo-se aos dados das ONGs, nos três primeiros meses do movimento, teriam sido presos mais de 18 mil manifestantes, milhares teriam sido feridos e cerca de 500 assassinados nos confrontos ou sob tortura (entre os quais cerca de 70 menores). Depois das condenações à morte já executadas, teme-se por outras já declaradas ou previstas (cerca de 100). Geralmente sem provas substanciais, com confissões extorquidas por meio de tortura. Pra não falarmos das condições desumanas na prisão e dos maus tratos sofridos pelas pessoas presas, em particular pelas mulheres.

Quando se grita, como destaca Somayeh Rostampour, que essa é “uma revolução das mulheres, pare de chamá-la de manifestação”, significa que desta vez (em relação aos movimentos de protesto do passado) as coisas são diferentes.

Quanto ao lema adotado, “Jin, Jiyan, Azadî”, passou a ser bradado por milhares de moradores de Saqqez (Rojhilat, Curdistão sob ocupação iraniana) durante o enterro de Jîna, o qual as autoridades tinham desejado que ocorresse em segredo.

Depois, passou a ser utilizado em outra cidade curda, Sanadaj, e em seguida pelos estudantes de Teerã. A partir de então, é ouvido claramente em todas as cidades e vilas do país inteiro.

Mas a estudiosa e militante curda se pergunta: “como esse lema chegou até Saqqez?”, e também: “qual é seu significado político e social, sua genealogia?”.

Jin, Jiyan, Azadî” não se tornou “a palavra de ordem da insurreição no Irã por acaso, ‘não caiu do céu’. Origina-se de uma longa história de lutas sociais. Representa a herança do movimento das mulheres curdas naquela parte do Curdistão localizada dentro das fronteiras da Turquia, o Bakur”.

Relembra, então, o que tinha escrito em setembro passado Atefeh Nabavii, companheira de cela de Shirin Alamholi, expoente do PJAK justiçada aos 28 anos em 2009 e cujo corpo jamais foi restituído à família:

“Soube pela primeira vez do lema Jin, Jiyan, Azadî por meio de Shirin Alamholi na prisão de Evin; estava escrito na parede da cela, ao lado de sua cama”.

Tanto o PJAK (Partido por uma Vida Livre no Curdistão) no Rojhilat quanto o movimento das mulheres em Bakur extraem sua visão de mundo do pensamento de Öcalan. Inicialmente (1978), o partido se valia de meios pacíficos, mas após o golpe de Estado de 1980 recorreu à luta armada. Também é notável que, desde 1999, aquele que podemos chamar de “Mandela curdo”, após um sequestro ilegal no Quênia, está detido na prisão de Imrali.

Inicialmente, naquela que podemos chamar de “fase marxista-nacionalista”, Öcalan também tinha sido influenciado pelo maoismo, bem como pelo pensamento de Frantz Fanon (Os condenados da terra) e de Che Guevara. Mas desde o início tinha fortemente encorajado o protagonismo das mulheres na luta de libertação, porquanto “a libertação do Curdistão não será possível sem a libertação das mulheres”.

Nisso ele se distingue da maior parte das organizações da esquerda revolucionária, não somente das organizações do Oriente Médio.

Ou seja, “o PKK jogava luz sobre a questão feminina tendo por pano de fundo o nacionalismo curdo moderno, que se baseava principalmente na defesa da pátria curda, do próprio território, da cultura e da língua curda”.

Na sequência, sobretudo a partir de 1995, ocorre no PKK o que Somayeh Rostampour considera uma “revolução cultural”, distanciando-se tanto da ortodoxia marxista mais rígida quanto da reivindicação de uma pátria independente (o “Grande Curdistão”) e evoluindo rumo a uma visão política centrada no conceito de “democracia” (em parte, em detrimento do conceito de “classe”). Em sua elaboração, Öcalan passa a individuar os sujeitos do processo revolucionário não somente nos trabalhadores, mas também, sobretudo, nas mulheres e nas práticas ecologistas.

Elabora uma síntese de comunalismo e autonomia social denominada “confederalismo democrático”, fundado em três pilares: as comunas, as mulheres e a ecologia.

A questão das mulheres se torna ainda mais central e a componente feminista do PKK adquire cada vez mais importância, tanto na elaboração política quanto na prática social. Bem como na Resistência, obviamente.

Contudo, já anteriormente, Öcalan tinha analisado e recuperado as antigas traduções matriarcais (matrilineares) mesopotâmicas (ver o antagonismo entre o deus masculino Enkidu e a deusa guerreira Ishtar) em contraponto tanto ao patriarcado quanto ao imperialismo e ao colonialismo.

Sua convicção era de que as mulheres, primeiras a criarem a vida e a cultivar os conhecimentos indispensáveis a ela, tinham sido expropriadas desses conhecimentos pelos homens.

Como Öcalan mesmo declarou, seu objetivo político era o de “restituir às mulheres a confiança em si mesmas, que elas tinham perdido demonstrando que o patriarcado não era um princípio eterno e natural da história, mas antes o resultado de práticas históricas”. Conclui, assim, que “o patriarcado podia ser superado”.

Pelo menos desde 1990, Öcalan tinha utilizado juntos, em diversas ocasiões, os conceitos de “Mulher” e de “Vida”.

Também porque a raiz das palavras mulher (Jin) e vida (Jiyan) na língua curda é a mesma.

Não por acaso, em 1999 o PKK publicava um documento intitulado “Jin, Jiyan” e, a partir de 2000, o lema “Jin, Jiyan” foi ampla e sistematicamente utilizado pelas mulheres curdas em Bakur (o Curdistão sob ocupação turca).

Desse ponto de vista, a expressão “Jin, Jiyan” é muito anterior à atual “Jin, Jiyan, Azadî”.

E também a palavra “Azadî” (Liberdade) se juntava aos conceitos basilares do PKK. Liberdade com relação às relações sociais de domínio e de poder, tanto do capitalismo quanto do Estado e do patriarcado.

Com base nos testemunhos recolhidos, em 2002, durante a cerimônia fúnebre organizada pelos militantes do PKK pra uma mulher vítima de feminicídio, as mulheres presentes tinham bradado o lema “Jin, Jiyan, Azadî” em sua inteireza. Desde então, continuou sendo difundido, se tornando quase uma tradição, sobretudo, pelas mulheres assassinadas.

Öcalan, de novo ele, tinha utilizado as três palavras juntas – talvez pela primeira vez – no quarto de seus livros escritos na prisão, A crise da civilização no Oriente Médio e a solução da civilização democrática, em 2006.

Não usado particularmente até 2008, explodiu, literalmente, em Rojava e Bakur, sobretudo a partir de 2013.

Numa carta escrita em 2013 (nos lembra Somayeh Rostampour), Öcalan evidenciava a potência inteiramente política do lema “Jin, Jyian, Azadî” na busca de uma “vida digna”, chegando a chamá-lo de “fórmula mágica” apta a fornecer um modelo pras mulheres de todo o Oriente Médio.

Naturalmente, “nem a história do PKK, nem a das mulheres no movimento, podem ser reduzidas àquela de seu dirigente”.

O PKK é “um movimento social e político que se desenvolveu não somente no âmbito político, mas também na vida cotidiana de milhões de pessoas já por várias gerações”.

E foram as mulheres do PKK, tanto as combatentes quanto as que atuam na sociedade civil, que transformaram o “Jin, Jiyan, Azadî” na ideia central do movimento. “Feminizaram” a política no Curdistão e também condicionaram a da Turquia, indo de casa em casa, falando com mulheres de todas as condições sociais e transformando a questão de gênero de uma exigência das elites num problema que concerne a todos os oprimidos.

Pra concluir com Somayeh Rostampour, “tudo o que ocorreu em 17 de setembro em Saqqez durante o funeral de Jîna Amînî não era um acontecimento sem precedentes”, mas antes “a continuação de uma tradição política revolucionária de longa data, gerada originalmente pelo PKK”. Tradição na qual têm tido um papel preponderante também as “mães pela justiça”, aquelas que perderam seus filhos na luta pela libertação no Bakur e no Rojhilat (cf. as “Mães do sábado” e o Dadkhaah).



domingo, 12 de maio de 2024

Sexo russo-ucraniano, ônibus no rio...


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Chegamos à décima edição do “mix de política”, geralmente com humor e muita crítica! Na verdade, abri mais este item como pretexto pra publicar alguns memes e piadas, além de um fato bizarro, mas de fato eles estão mais ou menos relacionados. Então vamos começar!

Há alguns dias, caí num grupo do Telegrão chamado “República da Gagaúzia”, que publica e se comunica em russo. Há algumas semanas me interessei por essa região autônoma da Moldova (antiga Moldávia soviética), onde vive um povo de língua túrquica, mas de religião ortodoxa, talvez um caso único, mas que fala cada vez mais russo ou romeno em detrimento do gagaúzo, que pertence ao mesmo grupo “oghuz” do turco moderno e, portanto, se parece muito com ele. Devido à ortodoxia religiosa e à conservação da língua russa, de fato ainda falada por grande parte da população moldova, a Gagaúzia mantém laços estreitos com a Rússia, e a presidente nacional pró-Europa, Maia Sandu, teme que cresça aí um foco de subversão a partir do Kremlin. De fato, em julho de 2023, foi eleita como presidente (bashkan) da região Ievgénia Gutsúl, burocrata de passado obscuro e antiga filiada do Partido Shor, pertencente ao oligarca pró-Rússia Ilan... Shor. Gutsul se apresenta como independente desde a interdição da legenda, mas até hoje não foi reconhecida por Sandu.

Achei que havia materiais e discussões sobre a cultura e o cotidiano da Gagaúzia no referido grupo, mas acabei descobrindo que se tratava de um covil de putinistas, que mal falavam da própria terra natal e provavelmente pertenciam à diáspora que vive em Moscou. O que mais se fazia era defender a invasão da Ucrânia e falar mal dos ucranianos: o ambiente era tão tóxico que, quando comecei a me apresentar, perceberam que eu tinha sobrenome ucraniano, viram que minha cara não era de brasileiro (apesar de meu telefone) e começaram a me questionar, embora eu não fosse lá pra atacar Putin ou defender Zelensky. De fato, eles mesmos falaram que era um grupo “de política”, e não de cultura, e dado que fui provocado, acabei expressando algumas opiniões sobre o conflito que obviamente os deixaram emputecidos. Não fui combativo, procurava o tempo todo fugir de briga, mas tive que sair, já que as mensagens não paravam devido à alta atividade (e ficava difícil de acompanhar o que era resposta pra mim) e a mentalidade xenofóbica era intragável. Se você sabe russo e quer estudar como funciona a cabeça de um “vátnik”, sendo ele sincero ou não, eis seu lugar: recomendo altas doses prévias de Engov e Dramin!

A coisa era tão feia que os viciados em rede social dispunham até mesmo de uma reação a mensagens em que se podia ler “Соси, хохол” (Sosí, khokhól), que se pode grosseiramente traduzir como “Chupa, ucraino!”, já que a palavra khokhól designa pejorativamente um ucraniano, na linguagem coloquial russa ou anti-Ucrânia. Seu sentido original é aquele tufo ou topete de cabelo que os cossacos (uma instituição originalmente ucraniana) costumavam usar no meio da cabeça, geralmente descendo pra testa, chamado oselédets em ucraniano, e de fato significa literalmente, sobretudo no proto-eslavo, “tufo” ou “topete”. É a frase que você pode ler na primeira imagem, junto à mensagem de uma mulher que também estava ofendendo outros: não conheço a fundo a tecnologia, mas minha questão é se tais reações podem ser baixadas em pacotes ou individualmente, e quem estaria por trás de sua confecção. Bem nojento, enfim...


Não publiquei essa montagem no referido grupo, mas poderia ser uma desforra: em seu programa semanal de geopolítica na TV Rain, Ekaterina Kotrikadze comentava o novo mandato que Putin arrancara esta semana, junto a um especialista que falava de Nova York. A frase que estava na tarja era “Putin entrou num quinto mandato”, mas pensei em outra coisa e até printei também outras partes pra obter as letras certas! Quem sabe russo já entendeu que minha nova frase significa “Putin foi se f...” ou “Putin foi pro car...”, mas se você conhece os memes brasileiros mais famosos, vai entender a referência do novo “plano de fundo”, com a bandeja do “suco de laranja” bebido por certo “pai de família”. Ainda não pescou? Você que vá pesquisar agora!

Comentário MUITO DO ALEATÓRIO numa matéria do G1 que falava sobre a dificuldade de muitas mulheres explorarem seu próprio prazer e como elas pouco conheciam sobre orgasmo, mesmo não sendo necessariamente virgens, mas às vezes até casadas por anos. Podia pôr num quadro pra assustar os jovens puritanos “liberais” de plantão, rs.


No último dia 10 de maio, um ônibus de transporte coletivo (que já parecia estar em alta velocidade) colidiu com um carro de passeio em São Petersburgo, o motorista perdeu o controle e o veículo caiu de uma ponte direto nas águas do rio Moika. Dos 20 passageiros a bordo, três morreram e vários ficaram feridos. Só repassei aqui as imagens das câmeras externas publicadas pela agência RIA Novosti porque são impressionantes.

Aproveito pra resgatar um vídeo que pus em meu antigo YouTube, com cenas de uma reportagem de 14 de janeiro de 2021 exibida na filial chechena da TV de notícias do governo. As notícias eram anunciadas e exibidas majoritariamente em russo, mas quando os entrevistados falavam em checheno, não havia dublagem nem legendas. Nestas imagens, são exibidos alguns acidentes urbanos e rodoviários na República da Chechênia ao longo de 2020, devidos a motoristas que não obedeciam às regras, e como (ver ao final) os pedestres também não se sentiam bem com as condições de tráfego.

As repetições que eu gostava de pôr na época são um tanto irritantes, mas ainda assim acho o material interessante: no início, o âncora saúda o público dizendo “Ассалам алейкум! Маршалла ду шуьга!” (Assalam aleikum! Marshalla du shüga!), sendo apenas a segunda parte checheno autêntico, significando “Saúdo-os!”, e a primeira você entende bem. Apenas depois ele diz “Здравствуйте!” (Zdrávstvuite!), “Olá” em russo:


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Cantemos ao pai amigo Kim Jong-un


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“A festa é sua, a festa é nossa, é de KIM quiser, KIM vier...”, kkkkk!


Raramente publico aqui, assim como publicava em meu antigo YouTube, traduções da língua coreana ou material sobre a Coreia do Norte e o dono do país, Kim Jong-un, porque não conheço quase nada do idioma, sendo insuficientes mesmo as traduções indiretas, e porque nunca foi meu tema de estudo. Óbvio que como interessado em geopolítica, direitos humanos e, sobretudo, história do comunismo, não sou totalmente ignorante quanto ao assunto, mas seleciono bem o que ocasionalmente consumo e não posso expressar o que penso a respeito como uma “verdade irrefutável” ou mesmo uma opinião profissional. O que não me interessa é justamente a puxação de saco nojenta de alguns moleques ou velhos caducos que criam “grupos de estudo” ou “centros políticos” sobre o que a ditadura chama de “ideia juche”, nem a cantilena moralista dos que pensam que os EUA e a Europa têm regimes perfeitos e com exclusivo mérito pra exportação e implantação acríticas.

Mesmo assim, a propaganda do regime, sobretudo a partir do terceiro membro da família que ocupa a liderança, Kim Jong-un (neto do “fundador” fantoche da URSS, Kim Il-sung, e filho do sucessor deste, Kim Jong-il), começou a tomar ares cômicos beirando o cringe, desde que a internet entrou como meio de exportação midiática. Com as redes sociais, as fanbases, mesmo de teor meramente humorístico, se multiplicaram, e com o TikTok e seus vídeos curtos de algoritmo poderoso, a juventude tem tomado contato com uma espécie de versão repaginada da arte da “guerra fria”. O medo de alguns analistas é justamente que as melodias pegajosas, a encenação milimetrada, a sonoplastia moderna e a descontração exibida por Kim Jong-un, muito maior do que a de seu retraído pai, levem os menos preparados a normalizarem a ditadura, confundirem os memes com a realidade e se fecharem aos estudos e relatórios profissionalmente acumulados por pesquisadores e entidades de defesa dos direitos humanos.

É o caso exatamente da mais recente canção e clipe de propaganda, “친근한 어버이” (Chingeunhan Eobeoi), que traduzi de modo simplificado como Pai amigo, mas que também pode ser traduzida “(Um) Pai amigável”, com letra de Ahn Bun-hee e melodia de Jeong Chun-il. Na verdade, segundo o Wiktionary, “어버이” (Eobeoi), que se pronuncia mais ou menos “âbâi”, é uma forma hoje reservada ao registro literário de “genitor(a)” ou “genitores(as)” (a palavra em inglês é parent), ou mesmo os “pais” tomados em conjunto, sendo que em coreano não há a categoria de gênero e nem sempre o plural é marcado. Porém, na Coreia do Norte, se tornou um dos títulos atribuídos ao “líder supremo”, isto é, os três membros sucessivos da família Kim citados acima. O que fiz aqui foi jogar no Google Tradutor a letra em coreano que achei num site e comparar com uma das muitas traduções pro inglês disponíveis por aí. A letra serve, portanto, apenas como orientação geral pra quem deseja estudar a propaganda ou a própria canção de maneira mais profunda.

Pai amigo (também título de uma das canções de Elias Muniz, um de meus cantores e compositores populares brasileiros preferidos, rs) é executada pela Banda Moranbong, um dos conjuntos que, assim como o lendário Conjunto Eletrônico Pochonbo e sua famosa gravação de Dançando lambada, é administrada pelo Estado norte-coreano. Composta apenas de vocalistas e instrumentistas mulheres, foi criada em 2012 e tem aparecido menos desde 2016, embora se apresente em grandes datas e ocasiões especiais, como provavelmente foi o caso desse lindo clipe. Ironicamente, é muito comum que elas também executem canções do pop ocidental e de filmes e animações do cinema americano, em vídeos facilmente encontráveis no YouTube! Você tem quatro versões à disposição: a tradução em inglês de um canal de canções legendadas, uma versão pra karaokê apenas com o áudio (mas também letra), o clipe oficial com legendas em coreano (que incorporei do Drive por ter mais valor) e uma legendagem em português, que achei por acaso num canal perdido e com a qual comparei a “minha” própria.

Perceba que tanto na versão escrita quanto nas legendas norte-coreanas, o nome de “Kim Jong-un” (transliteração mais comum de 김정은) aparece destacado de alguma forma: seja em negrito, seja na cor vermelha (de sangue dos mortos políticos? rs). Se você sabe ou conhece bem coreano e se interessa minimamente pelo tema, seu retorno com sugestões e/ou correções seria muito bem-vindo:








1. 어머니 그 품처럼 따사로워라
아버지 그 품처럼 자애로워라
슬하의 천만자식 한품에 안고
정을 다해 보살피시네

후렴:
노래하자 김정은 위대하신 령도자
자랑하자 김정은 친근한 어버이
인민은 한마음 믿고 따르네
친근한 어버이

2. 베푸신 그 은정은 바다같아라
주시는 그 믿음은 하늘같아라
언제나 우리곁에 함께 계시며
모든 소원 꽃펴주시네

(후렴)

3. 창창한 우리 앞날 열어주시네
더 좋은 우리 행복 안아오시네
한없이 은혜로운 그 손길 잡고
더 밝은 미래로 가네

(후렴 x2)

노래하자 자랑하자 친근한 어버이

____________________


1. Caloroso como os braços de sua mãe
Misericordioso como os braços de seu pai
Ele segura os 10 milhões de filhos nos braços
E cuida de nós de todo coração.

Refrão:
Vamos cantar sobre Kim Jong-un
O grande líder
Vamos nos vangloriar de ter Kim Jong-un
O pai amigo
Todos o seguem e confiam de todo coração
O pai amigo

2. O amor que você dá é como o mar
A confiança que você dá é como o céu
Você está sempre do nosso lado
E realiza todos os nossos desejos

(Refrão)

3. Você nos abre um futuro brilhante
Você nos traz mais felicidade
Você nos dá sua mão infinitamente graciosa
E nos conduz rumo a um futuro melhor

(Refrão 2x)

Vamos cantar e nos vangloriar do pai amigo



quarta-feira, 8 de maio de 2024

O putinço se volta contra o putinceiro


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Agradeço a meu amigo Claudio Cavalcante Junior, paranaense do Rio de Janeiro (rs), professor, mestre em Antropologia, doutorando em Sociologia e Antropologia e defensor das causas ucranianas, por ter me apresentado ao mais novo meme da “guerrosfera”, desta vez relacionado aos fascistas ocidentais que na verdade querem a vitória de Putin. Marjorie Taylor Greene, deputada federal do Partido Republicano pelo estado da Geórgia, nos EUA, é conhecida até mesmo pela Wikipédia como “teórica da conspiração”, pois como representante da ala “MAGA” (isto é, trumpista de choque) de sua legenda, defende com unhas e dentes todo tipo de afirmação maluca emitida pelo ex-presidente. Ela é considerada por alguns analistas como “mais trumpista que o próprio Trump”, e por seu exagero nesse sentido, eu a compararia com Carla Zambelli, que chegou ao extremo de ajudar na derrota de Bolsonaro perseguindo um negro no meio da capital paulista com uma arma na mão e ajudada por assessores. (Tudo bem que ele estava provocando, dizendo “Aqui é Lula, papai!”, mas isso nem de longe justifica.)

Há alguns dias, Taylor Greene ameaçou entrar com um pedido de cassação do deputado Mike Johnson, presidente da Câmara dos Representantes e também republicano, por ter ajudado a finalmente aprovar o pacote de centenas de bilhões de dólares de ajuda militar à Ucrânia, a Israel e a Taiwan. O bloqueio de meses só foi resolvido com o “fatiamento” da ajuda e a aprovação separada das partes, o que não impediu a deputada extremista de chamar o acordo bipartidário de “caminho a um partido único” (que ela chamou de “Uniparty”). Neste trecho de uma entrevista coletiva que ela publicou no próprio Équis, Taylor Greene denunciou o financiamento de mais uma “guerra interminável no exterior” em detrimento dos “interesses nacionais” (basicamente, terminar o muro na fronteira com o México e expulsar imigrantes latino-americanos). Num gesto esquisito, ela tirou um boné (feito por quem, e onde?) com as cores da bandeira ucraniana, contendo as iniciais “MUGA”, e o posicionou sobre um retrato com os líderes dos dois blocos, porque em suas palavras, o Uniparty tinha como política “Making Ukraine Great Again” (tornar a Ucrânia grande novamente):



Definitivamente, não só a trumpada infame não colou, como também o “MUGA”, sua peculiar e inesperada inovação, acabou tendo o efeito reverso de ser usado como símbolo de apoio à resistência ucraniana contra a invasão moscovita. Como disse um jornal dos EUA, a Zambelli ianque agora poderia dar um novo sentido ao MAGA: “Making Another Gaffe Again” (fazendo outra gafe novamente), rs. Segue abaixo uma pequena adaptação peculiar minha ao vídeo, e os memes e montagens que Claudio me mandou e outros que achei no Google Imagens, alguns deles explicados ou traduzidos:










“Todos esses rublos [pagos aos trumpistas] e é com isso que ela me aparece!”






O Raul Gazolla da quinta idade, ou Pedro Paulo Petr Pavel, presidente da Chéquia, ex-comandante da OTAN e o mais consequente suporte ocidental à Ucrânia, mesmo no antigo bloco soviético.


Os amigos da Ucrânia, agora “MUGAs” (rs), bebendo as lágrimas das putinetes defensoras de genocídio!











“Viver na Rússia” e “Elogiar a Rússia do conforto de um país ocidental” (lembrando que desde 2022 os ucranianos só usam “rússia” e “putin” com inicial minúscula). O termo pejorativo vatnik foi criado a partir de um meme em 2011, mas se popularizou na internet a partir de 2014 (invasão russa da Crimeia e começo da intervenção no Donbás) pra designar um ultranacionalista que acredita piamente na propaganda de Putin. É muito recorrente nas redes sociais da NAFO-OFAN citada acima, uma comunidade humorística criada em 2022 pra combater a desinformação do Kremlin e que até já se reuniu pessoalmente pela primeira vez em maio de 2023.

Claudio me mandou também este mapa, mas achei um pouco exagerado. É uma resposta à reivindicação de Putin sobre “terras historicamente russas”, mostrando como várias regiões hoje da Rússia também foram habitadas, até o século 18, por cossacos ucranianos depois assimilados à cultura russa ou forçados a deixar sua língua e cultura, sobretudo por Catarina 2.ª, que de Grande só tinha a pança... Depois da entrevista do ditador a um tuiteiro chamado Tucker Carlson, quando ele repetiu as mesmas mentiras históricas, um ex-presidente da Mongólia zoou postando um mapa com a Rússia e toda a Ásia Central pintadas de vermelho e designadas como o Império Mongol na Idade Média (e a “Rússia”, um pequeno círculo branco em torno de Moscou...). Deve ter sido a inspiração dos ucranianos, que também indicam os “russos” com o termo pejorativo “moskalí”.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Queriam que redes fossem atóxicas?


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Nova crônica de Ronaldo Lemos publicada na Folha de S. Paulo do último domingo, 5 de maio, e cujo conteúdo fiz questão de piratear, se chama “O aplicativo que incendiou as universidades nos EUA”. Ele afirma que o utilitário SideChat, uma espécie de Équis disponível apenas pra quem tem um endereço de e-mail universitário e cujos usuários permanecem anônimos, tem sido um espaço de crescente cultivo dos ódios e preconceitos que levaram à radicalização da Revolução da Melancia dos protestos pró-Palestina nas universidades americanas, especialmente a de Columbia. Lemos não esclarece se o app, lançado em fevereiro de 2022, também está disponível fora dos EUA, e eu acrescento que ele é a continuação de um certo Yik Yak (o nome soa familiar...), lançado ainda em 2013 e que faliu justamente por acusações de não prevenir discursos de ódio.

Felizmente, os brasileiros não tiveram tempo de engolir essa modinha, e realmente quase ninguém aqui (inclusive eu) os conhecia; e espero que ninguém resolva fazer a experiência! Deixo que você leia o resto no texto, mas já me pergunto: como os inventores do aplicativo não se deram conta de que um recurso com anonimato garantido ia se transformar de um espaço de desabafo numa rinha de galo? Não atinaram a que na mão de maluco, toda invenção prática pode virar arma? Ou Santos Dumont criou o 14-bis pra ficar se atirando em arranha-céus? Mas trágico é ver como a geração do finzinho dos 90, começo dos 2000, cresceu achando que no Google Store sempre ia ter um app disponível pra resolver qualquer problema da vida, fosse prático ou humano. Queriam curar a solidão e o deslocamento sem bater de frente com a sociedade e repensar seu próprio jeito de agir!

Pra além da falsa inocência, cabe notar que você precisa ter um correio institucional, ou seja, fornecido a estudantes, professores e funcionários por uma universidade, espaço que o próprio Trump detratou como “a nata da nata” da sociedade ianque. E se “a nata da nata” da sociedade se comporta do jeito como vimos na TV e tem difundido ideias como as que já se espalham pela Banânia há uns anos: 1) o que será então do resto da sociedade, que ainda pensa que na USP os alunos andam pelados e participam drogados de orgias? 2) como essas elites podem servir de modelo pra sociedade ao se portarem assim? É pra fazer Vilfredo Pareto se revirar na tumba!



O Yik Yak era coisa de corno, e o SideChat... é de chorar mesmo!


A culpa dos protestos que estão ocorrendo nas universidades dos EUA obviamente não é do aplicativo SideChat. No entanto, ele tem tido um papel na radicalização dos embates. Para quem nunca ouviu falar, o SideChat é um aplicativo para postagens anônimas. Uma espécie de Twitter, que fala de acontecimentos em tempo real por meio de mensagens curtas, vídeos e fotos.

Só que tudo é anônimo. A única informação é a universidade onde o conteúdo foi postado, mas não quem postou. Para se inscrever no SideChat é preciso ter uma conta de e-mail de uma universidade. Com isso o app esperava assegurar que as conversas acontecessem só entre estudantes e, por isso, fossem cordiais.

Não foi o que aconteceu. Relatos em toda a parte mostram que o SideChat se tornou uma espécie de porta do inferno. Em depoimento para a revista Wired, um estudante chamou o aplicativo de “esgoto”. A razão é a quantidade de conteúdo problemático postado, incluindo ataques racistas, incitação à violência, e conteúdo degradante, direcionado a israelenses e palestinos.

O resultado é visível em praticamente todas as universidades dos EUA, da costa leste à costa oeste. Este colunista foi professor da universidade de Columbia, epicentro dos protestos e tem acompanhado com preocupação a situação. Várias universidades cogitaram bloquear o aplicativo. No entanto, a ideia teve pernas curtas. Tanto por conta das proteções constitucionais à liberdade de expressão nos EUA, quanto por causa da impossibilidade técnica do bloqueio.

A solução foi então convocar reuniões com os representantes da empresa. A demanda em comum é o aumento na moderação do conteúdo do aplicativo. Pelo menos para reduzir o conteúdo claramente ilegal (racismo, incitação à violência etc.). A empresa afirma já fazer isso, e alega ter um time de “30 funcionários”, além de usar ferramentas de inteligência artificial. No entanto, os relatos apontam para um ambiente que na prática se torna cada vez mais tóxico.

O SideChat pode ser visto como o símbolo mais recente da crise profunda que tomou conta das universidades dos EUA. Originalmente instituídas como um farol da liberdade acadêmica, nos últimos anos foram se tornando incapazes de lidar com temas controversos. Ao se tornarem território de “guerras culturais”, a universidade foi se transformando em um campo minado, onde vários temas foram sendo suprimidos.

O SideChat se aproveitou disso. Como não era mais possível falar em voz alta sobre vários temas difíceis, o aplicativo criou um espaço virtual onde tudo poderia ser dito. Capitalizou a frustração de quem se sentia silenciado. Só que apostou no anonimato, caminho fácil e perigoso, que destrói os laços comunitários em vez de reconstruí-los. Com isso, abdicou do esforço de reconstruir um espaço baseado no respeito mútuo, para se tornar parte do problema.

Dá para aprender muitas lições com esse caso. A primeira é que discursos que são suprimidos não desaparecem. Ao contrário, eles se radicalizam ainda mais e vão migrando para canais mais opacos. Seja o SideChat, o Discord, o WhatsApp, o Telegram e outros. A tarefa que temos como sociedade é reconstruir espaços para lidar com temas difíceis. E não suprimi-los, ou tocar fogo neles.